GI2E2 - Epistemologia

Conhecimento Comum e Conhecimento Científico

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Em um esforço para a divulgação de mais textos sobre a epistemologia de Bachelard o Grupo GI2E2 publica o capítulo sobre o “Conhecimento comum e o Conhecimento científico” presente no livro intitulado Materialismo Racional. Neste texto Bachelard expõe “Várias vezes, nos nossos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos sempre cada vez mais evidente, no decorrer de nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso, que este novo espírito científico representava um jogo mais arriscado, que ele formulava teses que, inicialmente, podem chocar o senso comum. Nós acreditamos, com efeito, que o progresso científico manifesta sempre uma ruptura, perpétuas rupturas, entre conhecimento comum e conhecimento científico, desde que se aborde uma ciência evoluída, uma  ciência que, pelo fato mesmo de suas rupturas, traga a marca da modernidade.”

 


Conhecimento comum e conhecimento científico1

 

"Peu d'hommes ont une connaissance nette de la ligne de démarcation qui sépare le connu du connu."

Lord Frazer, Esprit des blés et dos bois, Préface.

"Ce sont plutôt les générations qui se corrigent, que les hommes: c'est la jeunesse encore exempte de préjugés, et indiférente aux systèmes qui en juge le plus sainement."

De Lue, Lettres physiques et morales sur l'histoire de ta terre et do l'Homme, Paris, 1779, t. I, p. 174.

 


I

Várias vezes, nos nossos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos sempre cada vez mais evidente, no decorrer de nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso, que este novo espírito científico representava um jogo mais arriscado, que ele formulava teses que, inicialmente, podem chocar o senso comum. Nós acreditamos, com efeito, que o progresso científico manifesta sempre uma ruptura, perpétuas rupturas, entre conhecimento comum e conhecimento científico, desde que se aborde uma ciência evoluída, uma ciência que, pelo fato mesmo de suas rupturas, traga a marca da modernidade.

Se uma semelhante tese epistemológica foi tomada às vezes como um simples paradoxo, foi porque se a julgou sobre uma base ampliada onde o espírito científico — sobretudo formulado a partir das ciências humanas — tem uma audiência natural. Então o espírito científico continua e desenvolve as qualidades de clareza, de ordem, de método, de sinceridade tranqüila, que são o apanágio do homem inteligente de todos os tempos, do homem feliz por aprender, do "honesto homem" tão característico da cultura clássica.

Mas precisamente o objetivo que nós assinalamos para nós era o de deixar estas generalidades epistemológicas e chamar a reflexão filosófica sobre o espírito cientifico stricto sensu, sobre o espírito científico especializado — haverá outros daqui por diante? — sobre o espirito científico nitidamente determinado por uma cidade cientifica que organiza as especializações.

Esta especialização, devidamente hierarquizada, traz uma dinamização particularmente feliz para o espírito científico. Ela implica com efeito uma reforma fundamental dos princípios do saber, ela reage tanto em profundidade quanto em superfície. Num exame de passagem, poder-se-ia acreditar a especialização química vítima do detalhe, mas de fato um estudo especializado de um corpo muito particular pode revelar traços característicos do ser material A especialização é o trabalho bem colocado, eficaz, organizado. De qualquer maneira, as novas matérias são dotes absolutos. Como não chamariam uma nova teoria do conhecimento objetivo?

Com efeito, quando nós lemos num livro de química contemporânea que "a estrutura cristalina do gelo é análoga à da wurtzita", que é um sulfureto de zinco, nós sabemos que estamos, evidentemente, numa outra perspectiva de pensamentos que a das filosofias da natureza. Nós desertamos a linha das experiências primitivas, dos interesses cósmicos primitivos, dos interesses estéticos. Nós compreendemos que a intencionalidade enquanto ela é dirigida sobre um objeto natural nos deixa uma objetividade ocasional. £ ao mesmo tempo uma intencionalidade sem grande profundidade, subjetiva e sem alcance verdadeiramente objetivo. Uma tal intencionalidade vai no máximo nos dar uma revelação da consciência ociosa, da consciência livre precisamente porque ela não encontrou um verdadeiro interesse de conhecimento objetivo, um verdadeiro engajamento. E bem a intencionalidade ofuscante de um existencialismo da consciência solitária.

Precisamente no simples exemplo que nós acabamos de evocar, em que se pode, cm plena consciência de artificialidade, comparar o gelo e o sulfureto de zinco, vê-se aparecer a ruptura da intencionalidade do conhecimento científico e da intencionalidade da consciência comum. A especialização é um penhor de intencionalidade estritamente penetrante. Ela remete, do lado do sujeito, a camadas profundas, onde o racionalé mais profundo que o simples consciencial. Numa experiência que engaja a cultura, como o quer a aproximação gelo-wurtzita, há, pelo menos, consciência desdobrada da. observação e da experimentação, há adjunção de uma necessária facticidade à aceitação primeira do fato natural. Nós sentimos bem que a especialização é uma raiz de cultura. Não há especialização sem uma Consciência aprofundada, sem um aprofundamento da consciência.

Mas a vantagem filosófica do trabalho científico para uma meditação deste aprofundamento racionalista da consciência, é que este trabalho é produtivo, é que ele é materialmente inovador: ele determina a criação de matérias novas. E, visto que nós encontramos no decorrer do presente livro muitos traços desta essencial inovação, desta dupla inovação do pensamento e da experiência científicas, nós podemos acentuar nossa tese e voltar, com argumentos novos, ao problema filosófico colocado pela existência de um novo espírito ou mais exatamente pela promoção de existência que representa um espírito científico marcado por um progresso incontestável. A química moderna — e a fortiori a química contemporânea — não pode nem deve deixar nada no seu estado natural. Nós dissemos, ela deve tudo purificar, tudo retificar, tudo recompor. A ruptura entre natureza e técnica é talvez ainda mais nítida em química do que no que diz respeito aos fenômenos estudados pela física. Nós podemos pois aqui, sobre exemplos precisos, como nós fizemos no nosso livro Le Maaterialisme appliqué, colocar a descontinuidade epistemológica em plena luz. Mas antes, para dar ao problema do progresso da ciência seu horizonte filosófico, examinemos de mais perto algumas objeções prévias formuladas pelos partidários da continuidade cultural.Depois de ter respondido a estas objeções um pouco longínquas, a estas objeções periféricas, nós voltaremos ao exame da nítida fronteira entre o conhecimento comum e o conhecimento científico.

 

II

Uma das objeções mais naturais dos continuístas da cultura vem a ser evocar a continuidade da história. Visto que se faz um relato contínuo dos acontecimentos, acredita-se facilmente reviver os acontecimentos na continuidade do tempo e se dá insensivelmente a toda história a unidade e a continuidade de um livro. Encobre-se então as dialéticas sob uma sobrecarga de acontecimentos menores. E no que concerne os problemas epistemológicos que nos ocupam, não se é beneficiado pela extrema sensibilidade dialética que caracteriza a história das ciências.

E, além disto, os continuístas gostam de refletir sobre as origens. Eles vivem na zona de elementariedade da ciência. Os progressos científicos foram de início lentos, muito lentos. Mais lentos eles são, mais contínuos eles parecem. E como a ciência sai lentamente do corpo dos conhecimentos comuns, acredita-se ter a certeza definitiva da continuidade do saber comum e do saber científico. Em suma, eis o axioma de epistemologia colocado pelos continuístas: visto que os começos são lentos, os progressos são contínuos. O filósofo não vai mais longe. Ele acredita inútil viver os tempos novos, os tempos em que precisamente os progressos científicos explodem de todos os lados, fazendo necessariamente explodir a epistemologia tradicional.

Para legitimar esta noção de "explosão"', eis algumas referências e fatos.

Riezler, referindo-se aos 600 isótopos descobertos ou criados pelo homem numa só década, vê ai, precisamente, uma evolução explosiva, "eine stürmische Entwicklung"2.

Uma descoberta como a de Joliot-Curie enunciada nestas simples duas linhas:


transtorna, em algumas semanas, todo um setor da ciência da matéria. Jean Thibault assinalou êle próprio a importância desta descoberta resumida em duas linhas.

Hevesy, no Colóquio sobre as "Trocas isotópicas e estruturas moleculares", que teve lugar em Paris em 1948, disse (pág. 107): "Para aqueles que viveram o desenvolvimento da radiatividade desde seus começos, a descoberta da radiatividade artificial aparece como um milagre." Sim, por que o sábio que vive o progresso científico intimamente não teria o direito de utilizar uma palavra, tão excepcional na sua boca, para dizer suas impressões?

A propósito desta descoberta da radiatividade artificial, Pollard e Davidson (loc. cit., p. 8) insistem também no desenvolvimento surpreendente, "the astonishing development" do campo dos conhecimentos humanos. De 1933, dizem eles, a 1945 (data do aparecimento de seu livro), o número de rádio-elementos artificiais passou de 3 para 300. Esta proliferação extraordinária da ontologia materialista não pode naturalmente ser, de fora, estimada no seu preço. Eis porque o filósofo não se espanta com este desenvolvimento espantoso. Ele lê e relê generalidades que condenam a técnica. Ele não dá nenhuma atenção ao caráter eminentemente desinteressado de certas pesquisas técnicas, ele não vê a beleza intelectual, ele fica estranho à harmonia que aparece nesta multiplicidade de seres bem ordenados. Eles desumanizam assim um esforço prodigioso do espírito humano, o esforço mesmo da cidade científica diante de um mundo a criar numa extraordinária novidade.

Em maio de 1948 (o mês tem agora uma realidade na bibliografia científica), F.B. Moon escrevendo o prefácio para o livro Artificial radioactivity publicado em Cambridge em 1949 se desculpa por não poder dar uma lista completa dos corpos providos de radiatividade artificial. Ele acrescenta: "O assunto se desenvolve tão rapidamente que tais listas se tornam rapidamente incompletas."A ciência da matéria cresce tão depressa que não se pode mais fazer o balanço dela. Num tal formigamento de descobertas, como não ver que toda linha de continuidade é sempre um traço muito, muito grande, um esquecimento da especificidade dos detalhes?

Aliás, é preciso perguntar aos sábios pela consciência das descontinuidades da ciência contemporânea. Eles designam estas descontinuidades com toda precisão desejável. No prefácio ao colóquio do C.N.R.S. sobre A ligação química (abril de 1948, publicado em 1950), Edmond Bauer, lembrando o memorial fundamental de Heitler e London sobre a molécula de hidrogênio publicado em 1927, escreve: "Este memorial marca uma verdadeira descontinuidade na história da Química. A partir de então, os progressos foram rápidos."

Nestes instantes inovadores, a descoberta tem uma tão grande pluralidade de conseqüências que se toca, evidentemente, uma descontinuidade do saber. A molécula de hidrogênio não é mais um simples detalhe do materialismo, um objeto de pesquisa como os outros. A molécula de hidrogênio, depois do memorial de Heitler e London, é um motivo de instrução fundamental, uma razão de uma reforma radical do saber, um novo ponto de partida da filosofia química. Mas é sempre a mesma coisa, o filósofo não aborda a zona das descontinuidades efetivas; ele afirma, pois tranqüilamente a continuidade do saber.

Uma segunda maneira de encobrir as descontinuidades no progresso científico é atribuir seu mérito à massa dos trabalhadores anônimos, Prefere-se dizer que os progressos estavam "no ar" quando o gênio os descobriu. Então entram em consideração as "atmosferas", as "influências". Mais se está longe dos fatos mais facilmente se evoca as "influências". As influências são repetidamente evocadas para as mais longínquas origens. Faz-se com que elas atravessem os continentes e os séculos. Mas esta noção de influência, tão cara ao espírito filosófico, não tem nenhum sentido na transmissão das verdades e das descobertas na ciência contemporânea. Sem dúvida os trabalhadores se agrupam, sem dúvida eles cooperam na pesquisa. Eles formam agora equipes, escolas. Mas o gênio de alguns laboratórios é feito ao mesmo tempo de crítica e de inovação. A autocrítica dos trabalhadores de laboratório contradiz em muitos aspectos tudo o que releva de uma "influência". Pouco a pouco, tudo o que há de inconsciente e de passivo no saber é dominado. As dialéticas pululam. O campo das contradições possíveis se estende. Desde que se aborda a região dos problemas, vive-se verdadeiramente num tempo marcado por momentos privilegiados, por descontinuidades manifestas. Lendo um livro como o de Gamov e Critchfield sobre a física nuclear, vê-se quanto os sábios têm consciência da imperfeição de seus métodos, da desarmonia dos métodos. "Não é satisfatório", eis uma locução que aparece quase a cada parágrafo. Nunca este racionalismo ensaiado que representam os métodos novos foi mais diverso, mais móvel, mais vigiado. Assim o racionalismo científico que deve assimilar o progresso da experiência vai no sentido contrário do dogmatismo do racionalismo sucinto. Pintar o espírito científico como um espírito canalizado no dogmatismo de uma verdade indiscutida é fazer a psicologia de uma caricatura fora de moda. O tecido da história da ciência contemporânea é o tecido temporal da discussão. Os argumentos que se cruzam aqui são outras tantas ocasiões de descontinuidades.

Uma terceira ordem de objeções é tomada pelos continuístas da cultura no domínio da pedagogia. Então, uma vez que se acredita na continuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, trabalha-se para mantê-la, tem-se como obrigação reforçá-la. Do bom senso quer-se fazer sair lentamente, suavemente, os rudimentos do saber científico. Repugna violentar o "senso comum". E nos métodos de ensino elementar, recua-se, como que por prazer, as horas de iniciações viris, deseja-se guardar a tradição da ciência elementar da ciência fácil; tem-se como dever fazer o estudante participar da imobilidade do conhecimento primeiro. É preciso portanto chegar a criticar a cultura elementar. Entra-se então no reino da cultura científica difícil.

E eis uma descontinuidacle que não se apagará facilmente invocando um simples relativismo: de fácil, a química tornou-se, de repente,difícil Ela tornou-se difícil não somente para nós mesmos, não somente difícil para o filósofo, mas verdadeiramente difícil em si. Os historiadores das ciências não aceitarão sem dúvida que se caracterize a cultura científica de nosso tempo como especificamente difícil. Eles objetarão que no decorrer da história todos os progressos foram difíceis e os filósofos repetirão que nossos filhos aprendem hoje na escola facilmente o que exigiu um esforço extraordinário dos gênios solitários dos tempos passados. Mas este relativismo que é real, que é evidente, não faz senão melhor ressaltar o caráter absoluto da dificuldade das ciências física e química contemporâneas desde que se deve sair do reino da elementaridade.

E não é uma questão de aptidão. Para alguns espíritos, as matemáticas mais elementares podem permanecer difíceis. Mas no que concerne a química, parecia que ela era uma espécie de erudição de latos materiais, que ela reclamava somente longa paciência e minuciosa experiência. Ela era chamada ciência de memória. Eis precisamente o que ela não é.

Os químicos são formais a este respeito. No fim do século XIX, diz Lespiau3 o estudante não encontrava na química "senão uma poeira de fatos sem coesão"; ele tomava por axioma "esta frase tantas vezes repetida ainda boje (em 1920): a química é apenas um assunto de memória. A saída do liceu, permanência a impressão de que esta ciência (?) não tinha nenhum valor educativo. Se, em seguida, no entanto, ele ouvisse um curso de química orgânica proferido por um atomista, sua opinião se modificava. Os fatos se encadeavam, bastava aprender alguns para achar saber muito". Excelente expressão da inteligibilidade indutiva que ordena um empirismo informe. Os fatos científicos se multiplicam e no entanto o empirismo diminui. Eis a memória dos fatos submetida à compreensão das leis. Neste caminho, a revolução epistemológica continua. Na química contemporânea é preciso compreender para apreender. E é preciso compreender em visões sintéticas cada vez mais complexas. Aquímica teórica está fundada. Ela está fundada em estreita união com a física teórica. No começo de nosso século, aparecia sob o nome dequímica física uma ciência bem delimitada, particularmente rica em experiências bem definidas. Nos nossos dias aparece uma química teórica-física teórica que dá às ciências físico-químicas um racionalismo comum. O ponto de interrogação que Lespiau indicava em seguida à palavra "ciência" (?) para simbolizar o doce desprezo dos educadores de seu tempo em relação a um estudo que ocupa inutilmente a memória, não traduz senão o ceticismo dos ignorantes, o ceticismo dos filósofos que decidem dos valores da cultura voltando ao tempo de sua adolescência escolar.

Para nos referirmos a um texto contemporâneo, não há uma espécie de desafio irônico na frase que termina o prefácio que R. Robínson escreveu para o difícil tratado de M.J.S, Dewar: The electronic theory of organic Chemistry (Oxford, 1949): "Como conclusão, eu desejo pleno sucesso a este recente esforço para generalizar nossa ciência num dos seus mais fascinantes aspectos. Passaram-se os dias em que a química orgânica podia ser estigmatizada como um trabalho de memória e os estudantes que se confiarão a Dewar para que ele os conduza através do novo território conquistado verão logo por que isto é verdadeiro."

Assim, torna-se tão impossível aprender a química sem compreendê-la quanto recitar de cor, sem estes pequenos tropeços que nunca enganam o professor perspicaz, a lição de matemática. E se você se acredita este poder de memória, basta abrir o manual de Dewar — ou o de Pauling — ou o de Eistler — ou o de Bernard e Alberte Pullman para experimentar suas forças. Aborde a química difícil e você reconhecerá que entrou num reino novo de racionalidade.

Esta dificuldade da ciência contemporânea é um obstáculo à cultura ou um atrativo? Ela é, nós acreditamos, a condição mesma do dinamismo psicológico da pesquisa. O trabalho científico exige precisamente que o pesquisador se crie dificuldades. O essencial é criar dificuldades reais, eliminar as falsas dificuldades, as dificuldades imaginárias.

De fato, ao longo da história da ciência, pode-se denunciar uma espécie de apetite pelos problemas difíceis. O orgulho de saber reclama o mérito de vencer a dificuldade de saber. O alquimista queria que a sua ciência fosse difícil e rara. Ele dava a seu saber a majestade da dificuldade. Ele cobria de dificuldades cósmicas, morais, religiosas, o problema das transformações materiais. Ele tinha, pois essencialmente o comportamento do difícil. Em suma, o saber alquímico realizava o para si da dificuldade. E como o realismo das manipulações alquímicas era fraco, o alquimista projetava seu apetite da dificuldade, este para si da dificuldade numa espécie de em sido difícil. Ele queria resolver um grande problema, romper o grande mistério. Encontrar a palavra do enigma lhe teria dado a onipotência sobre o mundo.

Freqüentemente o historiador que quer esclarecer seus pensamentos obscuros cai sob a sedução destas dificuldades caducas. Ele acrescenta ainda à dificuldade em que se embaraçava o alquimista, a dificuldade de se reportar, depois das evoluções múltiplas do pensamento científico, ao momento da história em que os interesses da pesquisa eram completamente diferentes dos nossos. Mas todas as sombras penosamente reconstituídas desaparecem quando se coloca os antigos problemas — os falsos problemas — em face de uma objetividade definida. Percebe-se que a experiência alquímica não pode ser "montada" num laboratório moderno sem que se tenha imediatamente a impressão de que se faz ao mesmo tempo uma caricatura do passado e uma caricatura do presente. Além disso, alguns grandes sábios contemporâneos gostam de colocar, como frontispício de suas obras, a antiga gravura de um velho livro reproduzindo o alquimista diante de seus fornos. Não será necessário colocar esta nostalgia dos antigos mistérios por conta deste inconsciente que acompanha o espírito cientifico como nós indicávamos no começo deste ensaio? Encontraríamos então um tema de continuidade: seria a continuidade do que não muda, a continuidade daquilo que resiste às mudanças. Mas não é mais aí que está o problema epistemológico que nós tratamos. De fato "as dificuldades da alquimia" representam, comparadas às dificuldades do materialismo moderno, um puro anacronismo. Entre as dificuldades de outrora e as dificuldades do pre sente, há uma total descontinuidade.

Enfim, para terminar este esboço de uma polêmica periférica contra os partidários da continuidade da cultura científica, nós faremos notar que a linguagem pode ser tão falaciosa nas ciências físicas quanto nas ciências psicológicas para espíritos não avisados, para espíritos que não estão atentos à evolução mesma da linguagem da ciência. A nomenclatura química não poderia ser definitiva como a tábua das declinações de uma língua morta. Ela é permanentemente retificada, completada, matizada. A linguagem da ciência está em estado de revolução semântica permanente.

Às vezes o epistemólogo continuísta é enganado, quando ele julga a ciência contemporânea por uma espécie de continuidade das imagens e das palavras. Quando foi necessário imaginar o inimaginável domínio do núcleo atômico, propôs-se imagens e fórmulas verbais que são inteiramente relativas à ciência teórica. Não se deve naturalmente tomar estas fórmulas ao pé da letra e lhes dar um sentido direto. Uma constante transposição da linguagem rompe então a continuidade do pensamento comum e do pensamento científico. Sem cessar é preciso recolocar as expressões novas na perspectiva das teorias que as imagens e as fórmulas resumem.

Tal é o caso, por exemplo, da imagem que Niels Bohr apresentou para condensar certas leis do núcleo atômico sob o nome de “gota d'água”. Esta imagem "ajuda admiravelmente, dizem Pollard e Davidson (loc. cit., p. 194) a compreender o como e o por que da fissão". Sob a capa desta imagem da "gota" onde se aglomeram os núcleos, poder-se-ia dizer que a incorporação de um nêutron suplementar aumenta a energia interna do núcleo, em outras palavras a "temperatura" do núcleo. Em seguida a este aumento de "temperatura", uma emissão de um corpúsculo poderá se fazer segundo um processo que se chamará de "evaporação". Mas as palavras gota, temperatura, evaporação devem naturalmente ser colocadas entre aspas. Para os físicos nucleares estas palavras estão de alguma forma redefinidas. Elas representam conceitos que são totalmente diferentes dos conceitos da física clássica, a fortiori bem diferentes dos conceitos do conhecimento comum. Obteria um grande sucesso de hilaridade quem perguntasse se a física nuclear fabrica um termômetro para medir ''a temperatura" de um núcleo!

Não há pois nenhuma continuidade entre a noção da temperatura do laboratório e a noção de "temperatura" de um núcleo. A linguagem científica é, por princípio, uma neo-linguagem. Para ser entendido na cidade científica, é preciso falar cientificamente a linguagem científica, traduzindo os termos da linguagem comum em linguagem científica. Se se desse atenção a esta atividade de tradução freqüentemente mascarada, perceber-se-ia que há assim na linguagem da ciência um grande número de termos entre aspas. A colocação entre aspas poderia então ser confrontada com a colocação entre parênteses dos fenomenólogos. Ela revelaria, esta colocação entre aspas, uma das atitudes específicas da consciência de ciência. Ela é solidária de uma declaração de consciência de método. O termo entre aspas eleva o tom. Ele ganha, acima da linguagem comum, o tom científico. Desde que uma palavra da antiga língua é assim colocada, pelo pensamento científico, entre aspas, ela é o signo de uma mudança de método de conhecimento no que diz respeito a um novo domínio da experiência. Nós podemos muito bem dizer que do ponto de vista do epistemólogo, ela é o sinal de uma ruptura, de uma descontinuidade de sentido, de uma reforma do saber.

O conceito de "temperatura do núcleo atômico" totaliza mesmo duas reformas. Ele avaliza de início, num novo domínio, a noção cinética de temperatura tal como ela foi introduzida na ciência pela termodinâmica clássica, e ele transpõe em seguida este conceito científico para uma esfera de aplicação onde o conceito clássico não se aplica normalmente. Vê-se estruturarem-se diversos estágios do conceitualismo da ciência: a "temperatura" do núcleo é uma espécie de conceito de conceito, um conceito que não é um conceito de primeira abstração. Ele é empregado porque estamos certos da significação racional clássica do conceito de temperatura, conceito que foi já destacado, pela física clássica, de suas significações sensíveis imediatas.

Mas tomando exemplos tão sábios, nós nos damos condições muito favoráveis. Nós iremos retomar o debate da descontinuidade do conhecimento científico a respeito do conhecimento comum estudando casos mais simples, nos colocando em épocas menos vigorosas cientificamente, em que se dá ainda uma grande atenção aos caracteres sensíveis imediatos dos fenômenos químicos e físicos.

III

Nós nos limitaremos a dois exemplos. No primeiro, nós exporemos a verdadeira obstinação de um grande sábio que quer ficar no imediato e que expõe pesadamente um monumento de ingenuidade. No segundo exemplo, nós exporemos ao contrário a longa paciência de um químico que acaba por afastar o privilégio dos dados sensíveis para determinar os caracteres naturais de uma substância nova.

No primeiro exemplo nós iremos ver que o fato científico evoluído tem pouca chance de se desenvolver por uma acumulação deobservações naturais. Qualquer coisa que se diga, no curso da ciência não se volta "à natureza". Bem mais, deve-se tomar consciência da ciência que já transformou o fato natural em fato científico. Neste exemplo, nós veremos também que o gênio não é mais, na ciência moderna, uma garantia de competência universal. Um grande sábio na ordem da biologia, um dos maiores observadores da natureza animada vai nos parecer um físico ou um químico manifestamente em atraso em relação a sua época pelo simples fato de querer trazer uma ciência já solidamente constituída a experiências banais. J.B. Lamarck, com efeito, escreveu numerosas notas para refutar a química de Lavoisier. Na terceira nota, lida no Instituto em 1797, ele escreveu4: "Eu pergunto a quem quer que tenha observado o que se passa na combustão, se alguma vez viu um corpo (concreto e sem incandescência) queimar antes que suas partes que queimam tenham adquirido uma cor negra; e se esta cor que este corpo adquire não é o fim de uma série de colorações diversas que ele experimenta sucessivamente à medida que seu estado de combinação se altera, até que ele tenha chegado a este termo extremo de coloração." Teofrasto já dava este mesmo axioma de senso comum: "Todas as coisas queimadas tornam-se negras5." Por esta observação comum, Lamarck pretende nos trazer à mais simples fenomenalidade, aos fenômenos da coloração e é pela evolução da coloração no decorrer de uma combustão que ele acredita poder especificar os diferentes estágios da combustão. O termo extremo da coloração é pois para Lamarck o negro e o negro é um antecedente necessário da combustão. Primitivamente o negro está mascarado por uma série de cores que vão até o branco superficial. Ir ao real profundo, ao negro fundamental, é desmascarar a substância. Este desmascaramento se fará pela violência do fogo. Lamarck dá na seqüência de suas Mémoiresnumerosas escalas "cronométricas" que devem permitir, segundo ele, seguir a evolução de numerosos fenômenos da matéria. Com as cores ordenadas de maneira sem dúvida singular, Lamarck pensa ter os elementos de uma espécie de sensualismo intelectualizado, ele acredita tocar diretamente a realidade por seus caracteres dominantes.

Para uma teoria tão especial de aplicações tão numerosas eis uma experiência de base (loc. cit., p. 60): "Apresente ao fogo um papel branco; vereis que à medida que o fogo calórico penetrar sua substância, se insinuará entre seus princípios, alterará seu arranjo e o estado de combinação, e desmascarará gradualmente seu fogo fixo, vereis, este papel se colorir também gradualmente. Ele ganhará de início um tom amarelecido; e vós o vereis passar sucessivamente ao amarelo, ao laranja,ao vermelho, ao violeta, ao azul, e por fim ao negro antes de queimar, se a desigualdade de alteração de suas moléculas aglutinadas não oferecesse uma mistura de moléculas já negras, entre outras que não são senão amarelas, vermelhas, azuis, etc, mistura que produz a cor ruiva que sucede o amarelo, se escurecendo gradativamente. Mas todas estas moléculas chegam necessariamente cada uma à cor negra antes de queimar, isto é, a um estado de descobrimento completo do fogo fixado que elas contêm."

Quem tivesse a paciência de ler as longas e numerosas notas de Lamarck sobre as ciências físicas reconheceria o perigo de promover a observação usual ao plano da experiência científica. Sentiria logo o caráter ingênuo desta tomada "concreta" sobre a "realidade". Para um espírito científico moderno, tais notas são ilegíveis. Espanta que um corpo sábio tenha podido suportar a leitura no tempo mesmo em que a cultura científica estava já engajada na solução de problemas bem colocados. Em suma, no tempo de Lamarck. a ciência química tinha recebido já um tal desenvolvimento que a volta a uma experiência pessoal era verdadeiramente um "anacronismo". Se Lamarck se tivesse colocado na escola da química de seu tempo, ele teria logo reconhecido que a combustão do papel, tal como ele a descreveu, era vã fenomenologia — uma fenomenologia que não pode autenticar senão uma consciência de sonho, uma consciência que vai perder consciência dela mesma. Desde o fim do século XVIII, a ciência da matéria tinha uma objetividade social tão forte que as meditações individuais deviam exercer-se num longo aprendizado antes de poder colocar problemas bem definidos. A hora da observação natural, imediata do domínio da química tinha passado. Aexperimentação no estilo da epistemologia moderna, já se tinha tornado a atividade específica necessária para fazer avançar a ciência. Mesmo uma substância nova devia receber uma experimentação a partir de uma experimentação já rica em determinações precisas.

Assim, da observação à experimentação, não há, embora geralmente se pense, uma filiação contínua. Há antes uma mudança de perspectiva. Esta observação encontra talvez sua prova no exemplo que nós acabamos de relatar em que um observador genial não sabe aproveitar do imenso esforço de experiências específicas dos experimentadores de seu tempo.

Mas eis um outro exemplo, o último deste livro, onde se verá as dificuldades lentamente dominadas no decorrer da longa história de uma descoberta química, de uma descoberta positiva, quando a matéria a caracterizar cientificamente se apresenta de alguma forma sobrecarregada de qualidades sensíveis, mal situada também numa filosofia da natureza. A lenta e confusa descoberta do ozônio vai nos permita- dar um relato circunstanciado da dessensualização de um conhecimento químico.

Todo historiador do ozônio deve, recorrentemente, se referir às observações e às experiências de Van Marum. Em 1785, lembra Naquet6, Van Marum tinha reconhecido que "o oxigênio torna-se odorante quando se o submete à ação repetida da faísca elétrica". Eis um fato preciso ligado a uma substância precisa. Parece que se poderia ter feito logo experiências elétricas semelhantes com o azoto e reconhecer que o azoto, ao contrário do oxigênio, não se torna odorante quando se o eletriza. Mas Van Marum foi invencivelmente atraído pelo mistério da eletricidade. Ele desvia sua atenção da própria matéria que acabou de examinar e conclui; "Este odor muito forte nos parece ser muito claramente o odor da matéria elétrica." Esta determinação sensualista, este odor, eis o que durante muito tempo vai dar às pesquisas falsos engajamentos substancialistas. Que se reconheça também este odor depois das grandes tempestades de verão, quando o ar se tornou menos pesado, mais agradável de respirar, mais balsâmico, eis o que traz um valor cósmico à experiência de Van Marum. Este "valor cósmico", resultado de uma valorização que mostra a persistência dos valores imaginários de que falávamos no começo do presente ensaio, desvia ainda a experiência de Van Marum de sua justa interpretação materialista. Assim durante mais de meio século, a descoberta de Van Marum permaneceu ineficaz.

O problema é retomado por Schoenbein em 1839. Em 1840, numa carta a Arago, Schoenbein indica as experiências que lhe permitem "entrever a verdadeira causa do odor elétrico". Ele não visa mais determinar a matéria elétrica provida do odor elétrico, ele procura como puro químico uma substância química. Neste caminho bem orientado para o materialismo químico, os erros foram, no entanto numerosos. Seguindo o relato, pode-se ver quanto o pensamento e a técnica científica devem receber retificações para visar, além do conhecimento comum, o verdadeiro objeto.

Indiquemos alguns dos primeiros erros. Schoenbein conclui que "o princípio odorante deve ser classificado no gênero de corpo ao qual pertencem o cloro e o bromo" e depois de ter consultado seu colega Vischer, helenista eminente, ele propôs lhe dar o nome de ozônio, palavra grega que significa cheirar.

Por um momento, Schoenbein, diz Naquet (loc. cit, p. 33), pensou "ter decomposto o azoto e ter obtido um radical análogo ao cloro, radical que, unido ao hidrogênio, constituiria o azoto". É preciso lembrar que em 1834, Balzac escrevendo La recherche de l’absolu, dava como finalidade dos longos trabalhos de seu herói Balthazar Claës a decomposição do azoto, este azoto que "nós podemos, diz o romancista, considerar como uma negação".

Em 1846, Schoenbein considerava ainda o ozônio como um peróxido de hidrogênio. Assim um sábio de primeira ordem como Schoenbein paira muito tempo sobre a natureza simples ou composta da substância que ele sabe preparar. Saber preparar uma substância não resolve todas as questões científicas que coloca a existência desta substância. Este simples exemplo prova quanto o pragmatismo é, no reino da cultura científica, uma filosofia insuficiente.

Aliás, mesmo quando se compreendeu por fim que o ozônio não era senão, materialmente falando, oxigênio num estado particular devido à ação da eletricidade esta origem "elétrica" continuou a colocar falsos problemas. O próprio Schoenbein acreditou poder definir, ao lado do ozônio, um outro corpo que ele chamou o antozone: o ozônio seria o oxigênio modificado pela eletricidade negativa, o antozone o oxigênio modificado pela eletricidade positiva.

Scoutetten assim se expressa a respeito destes dois tipos de ozônio7: "Estas duas espécies de ozônio se compõem entre si como as duas espécies de eletricidade, elas se neutralizam uma à outra, quando se as coloca em contato e o oxigênio volta ao estado neutro." Será necessário que pouco a pouco o meio de produção (os eflúvios elétricos) seja suprimido da substância produzida (a forma alotrópica do oxigênio) para desembaraçar a ciência deste fantasma de substância material que foi o antozone.

Reconheceu-se bem rapidamente o poder desinfetante do ozônio — poder que nós explicamos agora pelo fato de que a molécula de ozônio se destrói facilmente para dar 3 átomos de oxigênio que a constituem; o oxigênio aparece então sob sua "forma nascente" suscetível de determinar poderosas oxidações. São estas oxidações que dão conta do poder desinfetante. Mas não vamos logo a esta explicação química. Antes sigamos, no curso da história, as pesquisas sobre o poder desinfetante do ozônio. Nós veremos que estas pesquisas trazem a marca de uma intensa supervalorização.

Não estamos longe com efeito de fazer do ozônio o desinfetante providencial que vem destruir os miasmas e as pestilências que infectavam o céu de verão. Graças a este princípio, a Natureza tem um vis medicatrix cósmico. "Médicos e fisiologistas, diz Scoutetten que nós resumimos (cf. p. 289 e seg.) não demorarão a se perguntar se não haveria uma relação estreita entre a presença e a ausência de ozônio atmosférico e a manifestação e cessação de algumas epidemias, principalmente da cólera. Este pensamento imprimiu aos espíritos um novo movimento que, da Europa, se estendeu ao mundo inteiro. Este movimento começou na Alemanha, em Koenisberg. Em 1852, a sociedade de medicina desta cidade decidiu que uma comissão... faria durante um ano observações ozonométricas na cidade... Estas observações se fizeram sobre 6.251 doenças agudas, mas os médicos não chegaram a constatar uma relação certa entre as doenças observadas e a quantidade de ozônio contida na atmosfera.”

Em 1863, um doutor, H. Cook, reuniu nas Índias numerosas observações em seguida às quais ele afirmou que havia "uma relação evidente entre a presença da cólera e a ausência de ozônio e. reciprocamente, a presença de ozônio e a ausência do cólera".

A interpretação destas enormes estatísticas deixa aliás nosso autor diante de uma curiosa incerteza: "É muito difícil dizer, confessa ele, se os miasmas se acumulam porque o ozônio não está aí para destruí-los, ou se não se encontra o ozônio porque os miasmas estão em tão grande excesso para o consumir completamente." Esta segunda parte da alternativa mostra bastante claramente o caráter confuso deste "consumo de ozônio pelos miasmas.

Enfim, para acentuar esta supervalorização do poder desta substância que Figuier chama ainda, em 1872, "uma curiosa substância", acrescentemos, seguindo Naquet (loc. cit., p. 43), que ao lado das epidemias "cuja causa está ligada, direta ou indiretamente, ao desaparecimento do ozônio, pensou-se que poderia haver algumas que seriam devidas a seu excesso. E como o ozônio irrita os órgãos respiratórios, colocou-se nesta categoria as epidemias de gripes e de afecções catarrais em geral".

Todas estas explicações simplistas naturalmente caíram no esquecimento. Nós as lembramos para mostrar até onde vai o espírito sistemático quando ele acredita ter um valor de explicação geral.

Além disso, nós nos detivemos na longa e difícil determinação da natureza e das propriedades da ozônio apenas em alguns traços. Seria necessário um livro para relatar somente a história desta substância. Mas talvez nós tenhamos dito bastante para tirar as conclusões filosóficas deste longo debate. Parece-nos que o ozônio, do qual nós compreendemos agora a constituição, do qual nós escrevemos sem hesitar o símbolo O3 e ao qual nós consagramos um curto capítulo nos nossos livros elementares, pode ser um bom exemplo de uma substância muito temposupervalorizada.

Desde o começo, esta substância tem um grande peso cósmico: ela é o odor do raio; sua produção pela eletricidade lhe confere a importância histórica de tudo aquilo que toca o fluido misterioso. Fica-se particularmente atento a todas as suas propriedades sensíveis. Nestas condições, será uma tarefa longa e difícil fazer reentrar no laboratório esta substância "cósmica". Esta tarefa foi acabada graças aos longos esforços de ontologia restritiva. Esta ontologia restritiva se apresenta como uma dupla restrição por respeito a uma filosofia sensualista e por respeito a uma filosofia cósmica.

Em suma, o conhecimento imediato e o conhecimento comum se acomodam às grandes lendas da filosofia natural, ou reciprocamente as filosofias da natureza aceitam ampliar fatos que surpreendem a imaginação. Ao contrário, o conhecimento científico quer de início circunscrever seu objeto. Ele vai contra a corrente das vagas generalizações. Este movimento é visível quando uma vez se atingiu, por um conhecimento científico, um estágio avançado. Assim, quando se conhece a verdadeira natureza da molécula de ozônio, percebe-se que as justas idéias se formaram apesar da história, ou pelo menos num espírito dialético que sabe, em certos pontos do desenvolvimento histórico, se opor a tradições preguiçosas.

IV

Insistindo num exemplo tão especial, nós sem dúvida abusamos da paciência do leitor. Nós acreditamos no entanto que é ao nível dos exemplos particulares que a filosofia das ciências pode dar lições gerais. Eis porque nós multiplicamos os exemplos em todos os nossos livros na esperança de que se reconheça as diferenças essenciais entre um conhecimento que se torna científico e um conhecimento que acredita ter seu estatuto definido ao nível da experiência comum.

Entre o conhecimento comum e o conhecimento cientifico a ruptura nos parece tão nítida que estes dois tipos de conhecimento não poderiam ter a mesma filosofia. O empirismo é a filosofia que convém ao conhecimento comum. O empirismo encontra aí sua raiz, suas provas, seu desenvolvimento. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o racionalismo e, quer se queira ou não, o racionalismo está ligado a. ciência, o racionalismo reclama fins científicos. Pela atividade cientifica, o racionalismo conhece uma atividade dialética que prescreve uma extensão constante dos métodos.

Desde então, quando o conhecimento vulgar e o conhecimento científico registram o mesmo fato, este mesmo fato não tem certamente o mesmo valor epistemológico nos dois conhecimentos. Que o "odor" da eletricidade seja um desinfetante e que o ozônio seja um poderoso oxidante que desinfeta, não há entre estes dois conhecimentos uma mudança de valor de conhecimento? De um fato verdadeiro, a química teórica fez um conhecimento verídico. Por ele só, este duplo do verdadeiroe do verídico retém a ação polar do conhecimento. Este duplo permite reunir os dois grandes valores epistemológicos que explicam a fecundidade da ciência contemporânea. A ciência contemporânea é feita da pesquisa dos fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As leis verídicas da ciência têm uma fecundidade de verdades, elas prolongam as verdades de fato por verdades de direito. O racionalismo pelas suas sínteses do verdadeiro abre uma perspectiva de descobertas. O materialismo racionalista, depois de ter acumulado os fatos verdadeiros e organizado as verdades dispersadas, ganhou uma surpreendente força de previsão. A ordenação das substâncias apaga progressivamente a contingência de seu ser, ou. em outras palavras, cada ordenação suscita descobertas que preenchem as lacunas que faziam acreditar na contingência do ser material. Apesar de suas riquezas aumentadas, suas riquezas transbordantes. a química se ordena num vasto domínio de racionalidade.

E não é a menor lição da química contemporânea nos mostrar, além do racionalismo da identidade, a racionalidade do múltiplo.

NOTAS

1 - In Le Matérialisme rationnel, 1953. Retirado da Revista Tempo Brasileiro n. 28, 1972.

2 - Wolfgang Riezler, Eínfuhrung in die Kernphysik, 2° ed- Leipzig, 1942, p. 132.

3 - R, Lespiau. La molecule chimiquet Paris, 1920, p. 2.

4 - J. B Lamarck. Mémoíres presentant les bases d'un nouveus théorie physique et chimique, Paris, ano V. p. 59,

5 - Se nós quiséssemos reanimar as discussões que nós entrevimos no inicio doi presente trabalho nós poderíamos aqui tomar numerosos documentos da história da medicina. Por exemplo, um médico no começo do século XVII desenvolve longas considerações sobre esta coloração negra das matérias queimadas. Cf. Jourdain Guibelet, Trois discours philosophiques, Evreux 1608, p. 22 e seg.

6 - Naquet, De L’allotropie et de 1'isomérie, 1860. p. 31.

7 - H. Scoutetten, L'Ozone ou recherche chimiques, méteorologiques, physiologiques et médicales sur l’oxigène électrizé, Metz e Paris, 1856, p. 15.